Ars Dogmatica

Pierre Legendre

O Escrito vivo e a sua descendência :
um retrato do Estado será que ainda é possível ?

O Estado, o Estado… temos apesar de tudo de voltar ao bê-á-bá, considerar a força desta palavra vazia, esvaziada da sua humanidade totémica e dos seus conteúdos históricos, pelas gerações de especialistas que fizeram o Ocidente modernista : fabricar o utensílio institucional de série, exportável por todo a parte no planeta.

            Meio século após a grande agitação pós-colonial que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, a terra inteira ficou cercada de Estados, entre os quais umas quantas figuras-fantoches, supostas reinar no cenário de sociedades em descomposição, à custa de conflitos atrozes, insuperáveis. Testemunha onusiano de alguns desses dramas na época do Terceiro-Mundismo, eu tiraria uma conclusão segura : as nossas maneiras de abordar a forma estatal, tendo-se tornado maneiras de pensar fósseis, optei pela solução de voltar para a minha carapaça de erudição, a fim de tentar compreender o destino do que está em questão no «Estado», esse significante celebríssimo, saído das peregrinações da palavra latina «status» e manipulado sem limites, até ao ponto de ser inscrito na gíria organizacional ocidental, promovida língua obscura universal.

            Um apólogo da minha invenção salienta a indigência intelectual, que hoje substitui, os cálculos de gestor à reflexão sobre o poder. Com a ajuda dum personagem do romancista William Faulkner, descrevi a realidade substituindo no texto o termo «moral» pelo termo «Estado» :

            «…Esta inocência pensava que os ingredientes do Estado eram como os ingredientes duma tarte ou dum bolo, e que uma vez que os tivéssemos medido, pesado, misturado e cozido no forno, estava tudo dito, o resultado não poderia ser outro senão uma tarte ou um bolo.»

            A minha interpolação parece correta. Alie-se os ingredientes, económicos e financeiros, demográficos, psico-religiosos, militaro-estratégicos ; junte-se os perfumes culturais ; faça-se uma passagem pelo forno sociológico, após ter-se remexido agitando o chicote democrático. Isso deve dar um Estado, tarte com creme que venderão os angariadores do marketing político, conservador ou progressista, à escolha.

 

O estudo dos equilíbrios linguísticos da humanidade, esses testemunhas da interioridade das sociedades, desvenda o cariz do processo de uniformização, a cozinha política e a sua receita : uma ação internacional, de buldózer provida contra as ideologias concorrentes, nivela o terreno, isto é, erradica tanto quanto possível as tradições, para implantar o Estado segundo tal ou tal padrão.

            O «Tour du monde des concepts» (N.do T. — A «Volta ao mundo dos conceitos», livro coletivo sob a direção de Pierre Legendre, não traduzido.) cuja realização propus a alguns sábios de primeiro nível – homenagem lhes seja aqui prestada… – revelou a complexidade dos sedimentos semânticos, que o conformismo internacional imagina definitivamente eliminados da consciência das populações atacadas pelo buldózer modernizador. Uma nação (no sentido do latim natus que designa o que, tendo nascido, postula uma genealogia) é também o conservatório de escrituras ancestrais, mantendo nos bastidores sociais o rasto de representações do poder, intangíveis para o positivismo perigosamente estimulado pelo Ocidente. Alguns exemplos :

            Eis o chinês : após a antiga fórmula do «Filho do Céu», a evolução fez com que apareça o tema duma Família nacional, cujos sujeitos alinham-se docilmente sob a autoridade dum poder paternalista e maternalista.

            Na Índia, o hindi : o termo que designa a Constituição moderna e os seus altos servidores em função está baseado no longínquo passado lexical de injunções rituais, consagradas à proteção da ordem do mundo.

            Em África, Burkina Faso : a ideia de poder põe em causa a noção de terra, do chão, toma o sentido de região identificada pelas suas especificidades geográficas, climáticas, económicas etc., em seguida de aldeia e duma extensão de território sob a jurisdição dum «Dono da Terra» – a «Terra» primordial, dominada por uma potência mística da qual todos os homens dependem.

            E eis o árabe-persa : um termo tradicional polissémico teve primeiro o sentido de sucesso, de prosperidade, evocando ao mesmo tempo o carácter passageiro, cíclico dessa felicidade. Sobreveio então o sentido de poder dominador, de sucesso político outorgado pela Providência divina.

            Voltemos à nossa própria tradição : será que alguma vez se admitiu, que a forma estatal tenha surgido na Europa como objeto institucional já pronto a ser utilizado ? Que tenha talvez caído já cozinhado do Céu cristão ? A fantasia dum Estado que pudesse existir sem a tradição, nunca tinha passado pelo pensamento europeu… Foi preciso aguardar pela maturidade da ideia de Revolução, difundida pelos autores medievais – «reformar o mundo inteiro» (reformatio totius urbis) –, e no fim de contas, pela entrada em cena duma Tecnocracia política. Mas em seu princípio mesmo, exportar uma invenção institucional, forjada num certo lugar da história, tem a ver com a conquista, e no melhor dos casos, finda em mestiçagens imprevistas…

            Sobrevém então a nossa questão de Ocidentais. Por quais caminhos enterrados viemos nós, intelectualmente, a conceber que o planeta, que comporta os que não são nós, possa ser reorganizado, modernizado, amanhado, como se ele se tivesse, subitamente, transformado em tabula rasa ?

Uma operação de extermínio. Já desobscureci essa história. O que salta à vista até nos causar cegueira é a confiança sem limites nos nossos métodos de exploração do tempo. «Dominar o tempo sem ter compreendido o passado» : esta fórmula de Walter Benjamin endereço-a aos pedagogos imbecis, que há décadas governam a subeducação nacional em França !

Uma historicidade linear, vivida como uma sucessão de páginas que se viram sem outro esmero, engendrou a conceção duma espécie de temporalidade universal, uma medida para avaliar o sentido da história mundial planificada : o mais ou menos de convergência em direção a um ponto final, o Ómega da evolução das sociedades, uma Modernidade absoluta e total, vazando do seu conteúdo a palavra genealógica que arca com as civilizações. Num planeta homogeneizado, ou seja, des-historiado, realizar-se-ia, tomando então impacto duma exoneração – sermos exonerados da tormenta de pensar – a profecia de Orwell : «Nós desbastamos a língua até ao osso».

 

Nós já chegamos ao osso ! O Mundo globalizado não evolui como previsto. A prática desvitalizada da visão sobre o passado está cega ao sujeito de si mesma. A imensa desordem das ciências sociais, humanas e de gestão, nas quais coexistem obras significativas e logorreias enternecedoras, não é capaz de desenredar a obra dos «Mistérios do Estado», dessa mitografia imperial-cristã, que torna verdadeiramente compreensível o destino da forma estatal inventada pelo Ocidente, o segredo da sua eficácia mundial : uma transcendência fiduciária – ou segundo o nosso vocábulo tão gasto, a religião –, unida ao poder de absorver a alteridade por meio duma tecnologia, por meio dum direito-instrumento.

Para se compreender que o Imperium dos negócios sobre o qual se apoia a Globalização (subentendido : do viver e pensar ocidental) é um resultado lógico, a longo prazo, da mitografia europeia do Estado e que, a este título, clarifica o que exige a ocidentalização do Mundo – uma forma de confiscação das montagens de identidade (suicídio ou folclorização das culturas exóticas) –, é necessário adquirir uma visão de etnógrafo sobre o cadinho da Modernidade : a encenação do Escrito vivo realizada pela Idade Média clássica.

Mas a posição etnográfica que pressupõe, aqui, o estudo do institucional referente ao Ocidente, como se eu lhe fosse estrangeiro, não é evidente. Opõem-se os métodos em vigor que abordam o historial europeu contrapondo o sujeito à sociedade, e portanto, não tomam em conta, de maneira nenhuma, a questão de instituir a Razão ; para além disso, esses métodos isolam o âmbito jurídico numa «reserva» na qual coabitam as especialidades que têm, como deve ser, estatuto de técnicas puras ou de estudos marginais ; entre estes últimos, uma história do direito seguidista, sem envergadura…

O protótipo de Estado é o Escrito vivo, mitologicamente definido por uma fórmula que foi, desde o século XII, tirada da Romanidade pelo pontificado : «Ele tem todos os escritos do direito no arquivo do seu peito» (Omnia jura habet in scrinio pectoris sui). Este «Ele» é uma figura de antepassado, uma prefiguração do Estado. Na Antiguidade, a fórmula evocava, à maneira duma celebração, «os segredos do poder de comandar» (arcana imperii) que estavam sob a guarda do monarca imperial.

            Ao utilizar este enunciado, associando-o com a temática do «escravo mandatário do Cristo» (vicarius Christi), retida pelos canonistas para significar o estatuto teológico e jurídico do Papa, a Romanidade pontifícia mataria dois coelhos com uma cajadada : encenou por um lado a transcendência necessária ao poder político e por outro lado, legitimou a função do Sumo Pontífice enquanto estabelecedor de regras, servindo-se no direito romano, doravante à sua discrição.

            Eis-nos perante a montagem a que chamamos Estado. Digo protótipo, porque as nações oeste-europeias que um dia iriam empenhar-se nas conquistas coloniais, reeditaram a proeza dos escolásticos. Os seus monarcas não se abstiveram, de por sua vez, agirem como se fossem imperadores romanos, como se tivessem os mesmos atributos – «Por meio das Armas e das Leis» (Armis et Legibus) – como o pontificado ensinou à Cristandade europeia, mediante os seus rituais e os seus atos.

Veja-se o Emblema que representa o rei da Inglaterra como imperador romano. Esta gravura publicada em 1630 por George Wither, dá conta dum seguidismo fundador : o Estado moderno em formação alinhou-se pela mitografia elaborada pela Santa Sé, promotora da «Imitação do Império» (imitatio imperii). Uma Romanidade política generalizada, que introduziu na Europa do Oeste, uma concorrência entre Estados, numa luta pela dominação.

            Para bem se compreender a dimensão estratégica desta teologia do poder soberano, nas confrontações guerreiras no nosso continente, lembremo-nos, uma vez mais, da lucidez dos juristas politólogos da Idade Média, autores da máxima «Um só Imperador no Mundo» (Unus Imperator in Orbe). Isso quer dizer : não há lugar para dois…

            É prova disso, a rivalidade milenária entre a França e a Alemanha para se apropriarem da figura de Carlos Magno : uma estátua equestre foi erigida na esplanada de Notre Dame em Paris, ao passo que a memória da sua sepultura e o relicário contendo os seus restos mortais encontram-se piedosamente conservados em Aix-la-Chapelle (Aachen), em território alemão. É isso hoje um sinal de sobrevivência, de folclore turístico ?

            Imaginemos antes que esse Rei dos Francos, tendo-se tornado Imperador carolíngio, é o Antepassado germânico comum das duas Nações, envolvidas numa contenda mortífera, podendo-se dizer básica : a quem pertencem os despojos do Pai, ou por outra, a legitimidade e o poder consequentes ? Uma contenda latente – nos tempos antigos tribal, abarcando um duelo entre irmãos – permanece atuante de maneira subterrânea, no destino dum incerto «par franco-alemão» na Europa.

            Reflitamos nisso. Qual é o Estado ocidental que está hoje em posição de força – força teatral acima de tudo – para recolher os benefícios, se não é (provisoriamente talvez) o Senhor e Dono do poder jupiteriano denominado Estados Unidos da América ? Não esqueçamos portanto nunca, a encenação originária do Imperium teológico-político e jurídico no seio da cultura de tradição oeste-europeia, encruzilhada do industrialismo mundializado.

            A série das minhas Lições põe a descoberto o elemento determinante, de dimensão estratégica no advento do Ocidente como cultura dominante : a esquizo cristã, esse historial fundador atravancado nos nossos vincos institucionais.

            Desatravancar do mais profundo desses vincos, o que distingue o cristianismo dos outros dois monoteísmos, judeu e muçulmano, e para além destes últimos, as montagens repertoriadas pela etnografia, foi o caminho desta descoberta relevante.

            Como a Revelação cristã não contém uma constituição jurídica, o seu extraordinário destino, do qual é solidária a formação da Modernidade europeia, está fincado à Romanidade da Antiguidade, isto é, intimamente ligado à contribuição da cultura jurídica dos Romanos, a qual veio preencher essa falta de regras do Texto evangélico. Resultou daí o surgimento duma estrutura inédita na evolução – problemática sobre a qual os meus escritos contêm indicações, sem dúvida nenhuma, decisivas.

            De que maneira foi jogada a partida, política, e na sua prolongação, jurídica, no Oeste, no Leste ? E como é que aqui no Oeste, a proliferação da teatralização imperial romana pôde manter-se sem conflitos significativos, após a experiência da teocracia papal, que semeou o pomo da discórdia em grande escala, devido à confusão causada por uma demasia de potência ?

            Com esta perspetiva, o despontar do espírito laico em plena Idade Média, as Revoluções protestantes, o surgimento do Iluminismo e as guerras civis europeias, ganham um relevo novo, à medida do desígnio planetário, estimulado pela invenção da forma estatal…

O rei da Inglaterra representado como Imperador romano. Gravura inglesa extraída de George Wither. A collection of Emblems, 1630
Estátua de Carlos Magno em Paris
Estátua e relicário de Carlos Magno no capítulo da Catedral de Aix-la-Chapelle (Aachen) Foto : Ann Münchow

 Tradução : Júlio Ribas

Emblème

Solennel, l’oiseau magique préside à nos écrits.
Le paon étale ses plumes qui font miroir à son ombre.
Mais c’est de l’homme qu’il s’agit :
il porte son image, et il ne le sait pas.

« Sous le mot Analecta,
j’offre des miettes qu’il m’est fort utile
de rassembler afin de préciser
sur quelques points ma réflexion. »
Pierre Legendre

« Chacun des textes du présent tableau et ses illustrations
a été édité dans le livre, Le visage de la main »

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